Primeiro tocou a orquestra. Depois as cortinas se abriram e comecei a cantar. Tinha nas mãos a letra de Apesar de você, hino da resistência à ditadura que, em algum momento, todos nós tínhamos cantado nas ruas, nas praças, nos bares, nas esquinas. Difícil mesmo era entender, sob os holofotes do Teatro Municipal e à luz da razão, a emoção de estar ali.
Na coxia, mais de quinhentos artistas se preparavam para entrar em cena e, fosse por música, canto, dança, teatro, começar a mudar este país. Mudar no imaginário, na fantasia, na criação. Mudar no faz-de-conta, no palco, na loucura, Mas quanto há de loucura em querer mudar este país?
Durante as cinco horas de espetáculo que se seguiram, mudar se provou possível. Transformar na fantasia é o primeiro passo para transformar na realidade, é provar que recriar o Brasil é preciso e possível. Em cada cena, a arte emocionava, fazia rir, chorar. E cada um de nós, espectadores da imaginação alheia, nos encantávamos com um espetáculo que, além de todas as suas proezas, nos mostrava o quanto pode o mundo da cultura.
Estávamos em meados de maio quando, numa primeira reunião no restaurante do Teatro Municipal, cerca de trinta significativos representantes de todas as áreas aceitaram o desafio. Fazer arte contra a fome, fazer arte a partir da fome, fazer fome virar arte. Carregava então a mesma convicção que me move ainda. A de que um país muda pela sua cultura, não pela sua economia, nem pela política, nem pela ciência.
Aos poucos, os artistas começaram a se organizar, discutir, divergir, construir e reconstruir idéias, vontades, desejos, sonhos. Foram meses de dedicação. Mas, mais importante do que o tempo entregue a cada discussão foi dedicar cada arte, cada gest
o, cada tom, cada som ao outro, à solidariedade. O gesto de dar, de entregar, de somar. Não apenas exibir, mas doar e oferecer.
A cultura está entre nós, sempre. É no campo da consciência que o mundo se faz ou se desfaz, é nesse universo da imagem, do som, da ação, da idéia. Tudo se resolve na criação. É na invenção que o tempo volta atrás e o atrás vai para frente. É onde o homem vira bicho, bicho conversa com gente. É onde eu sou Guimarães, você é Rosa. É onde fica dantes ou tudo muda num átimo. É onde você se entrega de mãos amarradas ou se rebela de faca no dente. É onde o silêncio vira pedra ou o grito rompe tudo e esparrama vida por todos os poros. E onde o riso chora e o choro é o começo da cura.
Foi o mundo da cultura que primeiro aceito o desafio de mudar. De criar um outro Brasil. Sem pobreza e sem a arrogância dos ricos. Sem miséria, definitivamente. Um Brasil totalmente simples, mas radicalmente humano. Um Brasil onde todos comam todos os dias, trabalhem, ganhem salários, voltem para casa e possam rir, beijar a mulher amada, a filha que emociona, abraçar o amigo na esquina, se ver no espelho sem chorar pelo que não realizou.
Essa mudança começou a ser feita. Com sons, imagens, ação, idéias, e
moções. Essa mudança começou a ser feita com gente. E gente é, antes de tudo, cultura. Caldo de gente é cultura. Sumo de gente é essa parte divina que cada diabo carrega dentro de si. O mundo imaginário é onde, do duelo entre Deus e o diabo, não é possível prever o resultado. E é pela brecha da cultura que podemos dar o salto para o reencontro do país com a sua cara. Buscar o que é grande em cada um, buscar a possibilidade de fazer da felicidade o pão nosso de cada dia. É esta a vida e a nossa busca. É esta a fome e a nossa morte.
A cultura apareceu para construir no campo arrasado, para levantar do chão tudo que foi deitado. E descobrir, enquanto é tempo, que o importante é ser cidadão, é ser gente. O que importa é alimentar gente, educar gente, empregar gente. História é gente. Brasil é gente. E descobrir e reinventar gente é a grande obra da cultura. Uma obra que será nossa. Será porque a cultura continua a pensar, discutir, reunir, transformar.
A arte sabe e quer dizer mais, muito mais. A arte tem o poder de transformar, nem que seja primeiro na ficção, na imaginação.
Terminando o espetáculo, de volta aos bastidores, o mundo da cultura está desafiado a continuar pensando, fazendo, mexendo, revolucionando. Até aqui, foi grande. Mas o grito deve ecoar sem parar, o gesto feito deve continuar, entrelaçando ações, abraçando em solidariedade. Uma nova consciência deve criar o mundo novo e enterrar a miséria e a exclusão para sempre. Uma cultura que busque no fim de cada atalho uma reta. Que busque em cada ponta de sofrimento uma alegria. Que busque em cada despedida o reencontro. O Brasil está aí para ser criado, recriado. Essa criação apenas começou. E a ação de criar e recriar é a nossa cultura.
*Herbert José de Sousa, conhecido como Betinho, (Bocaiúva - MG, 3 de novembro de 1935 — Rio de Janeiro (RJ), 9 de agosto de 1997) foi um sociólogo e ativista politico que sempre lutou na defesa dos direitos humanos. Concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Este artigo foi publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 20/09/1993, e republicado no livro “Ética e Cidadania” [Carla Rodrigues e Herbert de Souza. São Paulo: Moderna, 1994, Coleção Polêmica, p.16-18], está disponivel no site da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.